segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Cabo Verde: Um país mil imagens! (2)

Praia

Estou na cidade da Praia com o “Pmate” – Universidade de Aveiro. O meu grupo tem a missão de garantir a organização da «ii bienal de Matemática, Língua Portuguesa e Tecnologias», a ter lugar na “Protecção Civil”, antigo aeroporto da Praia. Estamos todos confiantes no sucesso.
O programa sofre algumas alterações e a minha comunicação, que seria às 14 horas, é transferida para às 10 horas de 26 de Setembro. Só desejo que haja sala cheia, muito debate, muita troca de experiência sobre a investigação do nosso português. Partilho da convicção dos que afirmam que o português que viajou para o ultramar já não é o mesmo. É esta a ideia que norteia toda a minha investigação. É este o meu desafio. Tenho estado a pensar que o ensino do Português nos países africanos de expressão portuguesa assenta em utopias. Sei que esta afirmação não é politicamente correcta, nem uma descoberta científica. Acredito que há uma associação violenta entre o Português e o insucesso escolar. Há muitas crianças a serem diariamente violentadas nas escolas para falarem o Português, por professores também eles violentados, num ciclo vicioso de reprodução do mal. Ninguém sabe ao certo que Português se está a ensinar nas nossas escolas. Sei, repito, que estou a ser politicamente incorrecto. Mas não tenho outra forma de dizer a verdade.
Estamos a 24 de Setembro de 2009. A sala de conferências está repleta de participantes. É o início da ii bienal. O que nos reservamos uns aos outros para estes três dias de encontro? As primeiras comunicações impressionam-me sobretudo pelos projectos e pela vontade de uma afirmação colectiva nas três áreas do saber referenciadas. Procuro o reencontro com o passado comum (colonial) e tenho saudades de nada saber. Diria mesmo que sofro de um apagão do tipo "papel em branco". Entretanto, não me esqueço que o Português é a minha língua - é a nossa língua!
Enquanto decorrem as apresentações, reflicto sobre a minha vida profissional. Eu devia ser professor de Matemática e Física. Depois de inscrito neste curso, decidi mudar para o curso de Português. Pois, continua esta a minha aposta, desde a adolescência. Recentemente, e a pensar no Português de Moçambique (PM) tomei outra decisão: realizar investigação em Linguística do Discurso (oral), numa mescla entre o pedagógico e o social, para entender o “o quê” e o “como” falamos. E assim rompo com as áreas tradicionais de investigação (Sintaxe, Morfologia, Leitura, Escrita e Avaliação), na Universidade Pedagógica. Rompo também com os linguistas comparativistas (que não fazem mais nada do que comparar), embora compreenda o trabalho que realizam e utilize as suas valiosas contribuições científicas.
Penso nisto tudo em plena sala de conferências. Acredito que a minha experiência poderá ampliar as amostras e provocar discussões em benefício da educação e do processo do ensino e aprendizagem, não só em Moçambique, mas também noutros países de Língua Portuguesa. Julgo que os nossos projectos de desenvolvimento no sector da educação devem ter em consideração a nossa realidade (?!). Entendo que devemos conhecer melhor o que estamos a falar para melhor decidirmos sobre o que ensinar e como ensinar nos nossos países. As reflexões apresentadas na ii bienal em todas as áreas do saber devem-nos catapultar para o aprofundamento do conhecimento da nossa realidade, acima de tudo.
A cooperação internacional só faz sentido nos termos do parágrafo anterior. Moçambique, por exemplo, regista um grande avanço na investigação educacional, quer na área das línguas, quer noutras. A discussão científica é generalizada, embora os resultados não sejam publicados (ninguém conhece os misteriosos caminhos de uma ciência da gaveta!).
Apesar disso, ainda me lembro das calorosas discussões havidas na Faculdade de Medicina da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, nos meados da década 90, em que os temas eram o “erro” e as interferências linguísticas. Sei que aqueles debates davam sequência a duas principais investigações sobre o PM, nomeadamente, (i) a tese de Doutoramento “A Construção de uma Gramática do Português em Moçambique: Aspectos da Estrutura Argumental dos Verbos”, da Professora Perpétua Gonçalves (1990), e (ii) “O Panorama do Português Oral de Maputo”, organizado por Christopher Stroud e Perpétua Gonçalves (1997). Nessa altura (e ainda hoje), a preocupação do sector da educação era garantir melhor qualidade do ensino e reduzir o insucesso escolar.
Segundo Gonçalves (1997:45-65), o Português falado em Maputo apresenta uma série de desvios em relação ao Português Europeu (PE), nas áreas do “léxico”, “léxico - sintaxe”, “Sintaxe” e “Morfo. Sintaxe”. Alguns exemplos de “erros”:
Léxico (p.46): «não sou boa historiadora …(PE= contadora de história)»;
Léxico - Sintaxe (p.48): «Eu não concordo disso … (PE= com isso»;
Sintaxe (p.57): «dependendo da região que as pessoas vivem. … (PE = em que/onde)»;
Morfo – Sintaxe (p.62): «Há muitas dificuldade. PE= dificuldades».

Para além da comparação PM - PE, o exercício era extensivo à relação PM e línguas de origem Bantu faladas em Moçambique. Neste caso vertente, os desvios receberam designações, tais como, “interferências” e “erros”.
Nesta bienal, a discussão sobre as interferências linguísticas foi desencadeada pela comunicação de António Quino, de Angola. Pareceu-me haver unanimidade de que este é um problema comum a todas as nações africanas de Língua Portuguesa. Há evidências de que as línguas locais mudaram o português falado e estão a ditar novas normas da escrita. Note-se que processos semelhantes deram origem a novas línguas (por exemplo, os crioulos). Isto é irreversível e não precisa de decretos.
Como dizia, em Moçambique, a nossa preocupação prendia-se com a resolução dos problemas ora identificados. Questionávamos como é que um professor de Português devia proceder diante das chamadas “interferências”, como “maningue” (muito), “kanimambo” (obrigado), ou a desvios do nível da sintaxe, etc.. Que fazer? Sancionar o aluno porque “errou”, ou admitir que é PM? Ou seja, o que é que devia ser considerado “erro”?
Havia na altura, e ainda hoje deve ser assim, grupos dos “puristas” e seguidores do PE, grupos dos moderados e dos reformistas. Na verdade, os moderados e os reformistas são os que representavam os interesses do Ministério da Educação, apostado no aumento das taxas de aprovação dos alunos (à todo o custo!). À distância sinto que o problema ainda não foi resolvido. Não me parece haver solução a curto prazo. A situação atingiu o caos e precisa de uma nova ordem linguística.
Paralelamente a tudo isto, as investigações que nos são apresentadas caracterizam-se por um status quo, diria, comodismos alarmantes. Falta-nos a irreverência científica e a coragem de dizermos a verdade. Que Português é o teu? O meu é PM (falta-lhe apenas o rigor da Norma) - é um «sistema complexo», diria o Professor Constantino Tsallis.
Partilho da convicção dos participantes a «ii bienal de Matemática, Língua Portuguesa e Tecnologias» de que ESTAMOS JUNTOS neste desafio de desenvolvermos os nossos países. Até a iii bienal!